
Maria Beraldo em passagem de som no Sesc Santana, abril de 2019. Foto: Jan Balanco.
Um jornalista de música amigo meu afirmava que o melhor show que ele havia assistido naquele ano foi o de Maria Beraldo. Baiano e bairrista como só ele, outorgar esse título a uma artista da cena de São Paulo era algo muito forte para não ser levado em consideração. E aquele nome por si só já havia despertado a minha atenção: Maria Beraldo. Maria. Beraldo. Parecia nome artístico, mas claramente era um nome próprio. No início apenas uma Maria, no fim um pomposo Beraldo. De onde será que vinha esse sobrenome tão sonoro e tão diferente?
Eu não sabia quem era essa Maria Beraldo, nem que tipo de música ela fazia. Às vezes imaginava uma artista de música eletrônica vestida de preto operando sozinha seus sintetizadores, outras que seria uma cantora paulistana branca de cabelos escuros, da turma da nova música urbana brasileira, empunhando um microfone à frente de uma banda de barbudos. Supunha que algo de rock devia haver em seu som, pois sei que no fundo meu amigo gosta mesmo é de guitarras. Inevitavelmente imagens dela começaram a cruzar meu caminho e o que vi parecia uma mistura de tudo que eu havia imaginado a seu respeito. Mas de seu som, nada havia escutado até então.
O festival pernambucano Coquetel Molotov anunciou uma edição em São Paulo com Maria Beraldo na programação e julguei que era o momento ideal para conhece-la, de ouvidos limpos, ainda sem nenhuma referência auditiva. Uma chuva torrencial transformou o que deveria ser um rápido deslocamento de táxi da Zona Norte à Zona Oeste da capital paulista numa viagem interminável. Atrasado, assisti apenas o final do show. Ensopado e estressado, não consegui prestar atenção em muita coisa. Mas mesmo assim fiquei com uma boa impressão e vontade de conhecer mais.
Na manhã seguinte baixei seu único disco, Cavala, e o levei comigo cidade afora em meu celular. Ouvi algumas vezes mas não me impressionou. Era um bom álbum, sem dúvida, mas parecia ser apenas bom. Uma colega de trabalho insistia que se tratava de uma obra muito especial. Resolvi dar mais algumas chances, e em algum momento minha percepção mudou. Ela estava certa.
*
Maria Beraldo Bastos nasceu em Florianópolis em 21 de março de 1988, filha de mãe e pai músicos. Sua mãe Silvia Beraldo é saxofonista e flautista. Em 1995, após concluir seus estudos de música na faculdade Berklee, nos Estados Unidos, ela criou a escola de música Compasso Aberto, onde Maria e sua irmã Marina foram alunas. Seu pai, o baiano Rafael Menezes Bastos, é violonista e antropólogo, estudou com Koelreutter e Smetak na UFBA, com Claudio Santoro e Rogério Duprat na UNB, entre outros, e desde 1969 pesquisa a música de povos indígenas brasileiros. Maria Beraldo tem como principal instrumento o clarinete, primo do saxofone da mãe, e em sua carreira solo também toca a guitarra elétrica, irmã do violão do pai. Seguiu os passos de pai e mãe também na vida universitária, graduando-se Bacharel e Mestra em Música na Unicamp, com uma pesquisa sobre o saxofonista Casé, do lendário grupo Brazilian Octopus.
Como instrumentista Maria gravou clarinete, clarone ou flauta em discos de Dante Ozzetti, Luiz Tatit, Rômulo Fróes, Elza Soares, Tim Bernardes e André Marques. Mas sua atuação mais importante pode ser considerada na banda de Arrigo Barnabé, que a convidou para se estabelecer em São Paulo em 2013 e costuma ser citado por Maria como um mestre. Tocou no grupo de jazz instrumental Ideia de Antes, e atualmente integra os conjuntos Quartabê e Bolerinho, respectivamente de jazz experimental e canção brasileira. Ainda produz música para espetáculos de artes cênicas, no momento em cartaz com a montagem brasileira do musical Lazarus, de David Bowie, em que faz direção musical e toca ao vivo.
Com uma vida inteira dedicada à música, hoje Maria Beraldo, a artista, descreve a si mesma como uma “sapatona feminista compositora, cantora e clarinetista”. A ordem dos adjetivos não parece ser à toa e diz muito do que esperar de sua carreira solo. A primeira condicionante é a sexualidade, em segundo a política, em terceiro a composição, seguida do canto e por último aquela que parecia ter sido sempre sua identidade principal, a instrumentista. Talvez seja possível afirmar que Maria virou-se do avesso. Pesquisando seu histórico de gravações, a clarinetista foi sempre sua face mais presente, com alguns registros vocais aqui e ali, quase nenhuma composição própria, e a política e a sexualidade não pareciam despontar diretamente em sua arte antes do surgimento da Quartabê em 2014 ou a gravação da primeira canção que compôs, “Da Menor Importância”, por Lineker (atual São Yantó) em 2016. Seu primeiro disco solo, Cavala, é obra de uma mulher que concluiu que afirmar sua sexualidade é uma necessidade e um ato político, que não há como não estar presente em sua arte, é preciso cantar e tocar a questão. Cavala é um disco-grito de libertação. Cavala é um livro aberto.
Difícil de classificar por meio dos rótulos mais usuais, e portanto complexo de descrever, o disco também é libertação de gêneros musicais. As canções transitam entre o pop, a MPB, o jazz, a erudição, a dance music e o art rock, nunca satisfeitas. Muitos artistas mesclam influências em seu trabalho, e é comum que o resultado de experiências do tipo soe como uma colagem, sem fluidez, às vezes até mesmo um pastiche. Nesse aspecto as composições de Maria Beraldo encontram-se num patamar muito diferente da maioria. Elementos de diferentes gêneros musicais passeiam de mãos dadas pelas canções, sem distinção, se amalgamando em algo único, de característica própria, que só podemos classificar como a música de Maria Beraldo.
Ser única não é sinônimo de ser a primeira, e Maria escancara suas influências sem medo. Não apenas revisita a história da música popular brasileira, mas reinventa e contemporiza canções de seus antecessores dentro das suas próprias. “Da Menor Importância” tem seu título adaptado de “Da Maior Importância”, de Caetano Veloso, do álbum Qualquer Coisa (1975), sendo que ambas são as segundas faixas de seus respectivos discos e refletem sobre desejos e conquistas amorosas, porém com vieses bem distintos. A faixa seguinte, “Amor Verdade” também remete a uma canção de 1975, “Pai e Mãe” de Gilberto Gil, lançada no disco Refazenda. Suas letras são narrações de confissões de amores não-heterossexuais direcionadas ao pai de cada narrador/a. “Maria” é uma resposta a “Paratodos”, do disco de mesmo nome de Chico Buarque de 1993, na qual Chico narra sua ascendência através dos homens de sua família: “O meu pai era paulista/ Meu avô, pernambucano/ O meu bisavô, mineiro/ Meu tataravô, baiano”. Utilizando do mesmo expediente Maria resgata suas mulheres: “Minha mãe não era, é mineira/ Minha vó nasceu no interior de Minas/ Minha bisavó baiana eu imagino só”. “Helena” tem verso quase idêntico a “Irene”, faixa de abertura do chamado Álbum Branco de Caetano Veloso (1969): “Eu quero ver Helena rir”, canta Maria por sua sobrinha; “quero ver Irene rir”, canta Caetano por sua irmã. Assim como a Irene de Caetano, o riso da Helena de Maria também alimenta a esperança da compositora no futuro. E há ainda uma versão para “Eu Te Amo” parceria de Chico Buarque e Tom Jobim (Vida, 1980), a única das dez faixas do disco que não é composição original da artista.
Nenhuma música é mais bela que a faixa título do álbum, “Cavala”, que em menos de dois minutos de duração galopa suave, em determinado momento estanca, em outro acelera o trote. “Cavala” na verdade remete ao ato sexual entre duas mulheres. Num perfeito simulacro do ato, a música começa lenta e imediatamente na letra (Uma cavala/ Ela cavalaria/ Ela tão lisa) e assim continua sem alteração de ritmo no segundo verso, como numa preparação (Ela cavala/ Uma cavalgaria/ Sua tão lisa coisa tão lisa). Ao chegar no terceiro verso a música cresce suavemente através de frases mais longas e maior presença de elementos sonoros ao fundo (Eu morreria de você me dar/ Morreria/ Teu cheiro encarnar na cavalaria), para enfim fixar um ritmo mais veloz e constante enquanto a cantora repete ia ia ia ia numa espécie de quarto verso. E então a letra é interrompida de repente e volta para o princípio seguindo a mesma estrutura de lento, crescendo e constante, porém agora numa dimensão de maior grandeza, anunciando a aproximação do ápice do ato sexual, o gozo. O ia é repetido uma vez a mais que na primeira parte da canção, e a música é interrompida tão bruscamente quanto começou, esgotada.
Nos dois primeiros versos de cada estrofe podemos interpretar que a primeira parte refere-se à parceira que cavalga a narradora (Uma cavala // Ela cavala), a segunda parte é o verbo que guia a ação dessa parceira naquele instante (Ela cavalaria // Uma cavalgaria e Ruiva cavalaria // Uma selvageria), e a terceira parte descreve o órgão sexual da parceira, mais especificamente as paredes internas da vulva (Ela tão lisa // Sua tão lisa coisa tão lisa e Ela tão linda // Sua tão linda coisa tão linda). Enquanto a imagem da parceira mantem-se fixa, a ação se modifica, crescendo de cavalaria a selvageria). Já nos terceiros versos a estrutura parceira/ação/órgão se mantém, porém a precisão da estrutura se dissolve à medida que a narradora se envolve mais profundamente com sua parceira (Eu morreria de você me dar/ Morreria/ Teu cheiro encarnar na cavalaria e Eu morreria de você me dar/ Morreria/ Teu sonho encarnar na cavalaria). Estendendo a última sílaba do verso anterior e a transformando em verbo, como na primeira parte da música, a protagonista delira num mantra que ia ia ia ia ia, desta vez com uma repetição a mais, até parar por completo como se houvesse atingido o orgasmo.
A ousadia temática de “Cavala”, a canção, assim como a ousadia musical de Cavala, o disco, são frutos do processo de libertação sexual e criativa da artista comentado anteriormente. Trata-se de um processo típico desta época em que, assim como uma nova geração de jovens assume gêneros diversos com maior abertura, músicos não mais se agrupam necessariamente em tribos, mas fluem por diversos gêneros musicais. O crítico Lorenzo Mammí, ao ponderar em um ensaio de 2007 sobre a situação da música brasileira, concluiu brilhantemente que “o cânone, que vai mais ou menos de Nazareth a Chico e Caetano, já se fechou. Pode sofrer um acréscimo aqui ou ali, mas na substância já está formado, e é um valor indiscutível e incontornável para qualquer um que não seja de todo surdo ou insensível. Forma um núcleo sólido, uma casca dura sobre a qual pode se correr à vontade. Desse ponto de vista já não há mais diferença substancial entre, digamos, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes, Zélia Duncan e Chico César, José Miguel Wisnik e Cássia Eller. Eles têm o mesmo background e o mesmo objetivo: simplesmente, o de escrever canções – e a canção brasileira já é definitivamente o que é. Não há mais distâncias porque, descontadas as diferenças de gosto e de qualidade, não há mais direções”. Passada uma década dessa constatação de que a MPB está consolidada no cânone de nossa música, aquela canção brasileira definida num cenário sem distâncias ou direções acabou por sua vez vindo a se caracterizar como uma nova tradição. O contato com a obra de Maria Beraldo me faz ousar crer que possamos estar agora em um novo capítulo na história. Talvez a pós-MPB tenha chegado a um tempo de resolução, e Cavala seja uma amostra e um prelúdio de um futuro ainda porvir, frutífero, de libertação e renovação da canção brasileira.
*

LP Maria Beraldo – Cavala. Três Selos, 2019. Foto: Jan Balanco
Lançado em vinil pelo clube de assinaturas Três Selos, projeto que envolve os selos Goma Gringa, EAEO e Assustado Discos em maio de 2019, com masterização de Arthur Joly, o disco foi prensado pela Polysom em tiragem limitada de 300 cópias, com a boa qualidade já estabelecida da fábrica brasileira. A edição contem encarte, obi e um cartão. Apesar de disponível para venda há alguns meses, seu show de lançamento oficial acontecerá na sexta-feira 4 de outubro no teatro do Sesc Belenzinho, em São Paulo. Uma boa oportunidade para quem estiver na cidade assistir Maria Beraldo ao vivo, cujas apresentações costumam ser avassaladoras, e ainda adquirir o LP diretamente com a artista. Escutei Cavala bastante por streaming em plataformas digitais de música enquanto ainda não estava disponível em vinil, e posso afirmar que a experiência auditiva agora é incomparável. O álbum cresce muito neste formato de mídia física, chegando a parecer que estamos escutando um outro disco. Infelizmente não possuímos a versão em CD para realizar um comparativo de qualidade entre os formatos, mas quanto ao LP não há dúvidas de que a edição da Três Selos toca bem e vale o investimento.
Optei neste texto por não me estender na avaliação das características sônicas do disco por acreditar que na crítica desse lançamento específico isso não constitui um tópico de muita relevância. Considerando que ainda há casos no mercado fonográfico brasileiro de edições em vinil preparadas erroneamente que acabam soando tão mal que é melhor não adquiri-las, julguei como fundamental para o/a leitor/a do Vida em Vinil a informação pura e simples de que se trata ou não de uma edição honesta que soe corretamente.
*
Equipamento utilizado
Toca-discos Rega RP6
Cápsula Denon DL-110
Amplificador integrado Cambridge Audio 640A
Pré de phono Cambridge Audio 651P
Caixas Baubo DAD Luxo
Fone Grado SR60
Cabos Audioquest Evergreen
*
Referências
BERALDO, Maria. Samba Irresistível: Um estudo sobre Casé. Campinas: Unicamp, 2013.
______. Maria Beraldo. <http://instagram.com/mariaberaldo>.
______. A música só pode me salvar e não me afundar. Entrevista realizada por Dani Arrais. In: Don’t touch my moleskine. São Paulo, 2018. Disponível em: <http://donttouchmymoleskine.com/maria-beraldo-a-musica-pode-me-salvar-e-nao-me-afundar/>.
______. Maria Beraldo, entre a força e a doçura. Entrevista realizada por. Brenda Vidal. In: Noize. São Paulo, 2018. Disponível em: <https://noize.com.br/entrevista-maria-beraldo-entre-forca-e -docura/>.
BERALDO, Silvia. Entrevista por Isabela Althoff. In: Palavra Aberta. Florianópolis: TVAL, 2016. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=FS7rEuuuW5g>.
MAMMÌ, Lorenzo. Os Sonhos dos Outros. In: NESTROVSKI, Arthur. Lendo Música: 10 ensaios sobre 10 canções. São Paulo: Publifolha, 2007.
MENEZES BASTOS, Rafael José de. Entrevista com Rafael José Menezes de Bastos. Entrevista por Deise Lucy Oliveira Montardo, Acácio Piedade. In: Música e Cultura, nº3. Florianópolis: UFSC, 2008.
______. A ciência, como a bruxaria, se faz com tudo que somos. Entrevista realizada por María Eugenia Domínguez. In: El Oído Pensante, vol. 4, nº 2. Buenos Aires, 2016. Disponível em: <http://ppct.caicyt.gov.ar/index.php/oidopensante>.
*
Nota: Esta crítica foi originalmente escrita em maio de 2019 como uma atividade da disciplina Canção e Cultura, ministrada pelo Prof. Dr. Cacá Machado na Pós-Graduação em Canção Popular da Faculdade Santa Marcelina. O texto foi editado e ampliado para publicação no Vida em Vinil exclusivamente pelo autor.