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[Coluna] Desacelerar #1 – por Jan Balanco

Desacelerar #1 / Foto: Bruno MacielFoto: Bruno Maciel

“É impressionante como a minha relação com a música mudou”, comentava meu pai enquanto examinava, uma última vez, os cerca de 50 LPs que restaram de sua coleção e que agora transmitia a mim. Hoje ele escuta música no carro enquanto dirige e no computador enquanto trabalha; rádio e alguns CDs. Em seu apartamento não há mais um sistema de som ocupando lugar de destaque na sala de estar como no passado. O microsystem que ainda era usado há alguns anos atrás, suspeito que provavelmente nem ligado à tomada está. Meu pai tira o LP “Alucinação” de Belchior da pilha, recorda o quanto o escutou e o papel importante que esse disco desempenhou em sua juventude, e me recomenda a música “A Palo Seco”, faixa 3 do lado B. Fico feliz por ele ainda ter um exemplar do “Clube da Esquina” e mostro-lhe na tela de meu celular esse disco anotado em minha lista de compras futuras, porém sem previsão de aquisição próxima devido aos altos preços a que boas cópias desse álbum estão sendo vendidos atualmente. O lote ainda conta com vinis de Caetano, Chico, Gil, Barão, Legião e outras figuras conhecidas. O melhor presente de Natal que um colecionador poderia desejar.

A mudança na relação que meu pai tem com a música não foi planejada, simplesmente foi acontecendo sem que notasse, e não difere do que aconteceu à grande maioria dos apreciadores de música, eu incluso. Ainda criança escutava LPs em companhia dos amigos que moravam em minha rua, copiávamos as letras à mão em papel de caderno, emprestávamos discos uns aos outros, gravávamos fitas K7, tocávamos guitarras imaginárias no ar. Rituais de apreciação à altura da arte que emanava daqueles sulcos. Passaram-se muitos anos até que o CD surgiu avisando que os discos de vinil eram artefatos antiquados e de má qualidade, que deviam ser jogados fora e substituídos pela nova mídia vinda do futuro. Os aparelhos de som foram então diminuindo de tamanho, perdendo lugar nas salas de estar e sendo empurrados para o domínio individual dos quartos, ao passo em que a miniaturização os deixavam cada vez piores em termos sonoros. Eram os anos 1990 e a minha versão adolescente escutava na solidão do quarto baladas de rock alternativo enquanto olhando para o teto pensava no amor não-correspondido, ou discos de punk rock que me diziam que tudo no mundo estava errado e eu precisava fazer algo a respeito. O aparelho 3 em 1 havia se transformado em um discman e depois em um PC, no mesmo momento em que sem que percebêssemos o CD virou abóbora, ou melhor, MP3. A essa altura os poucos vinis remanescentes mofavam em uma sacola de compras no banheiro dos fundos, e os CDs acumulavam poeira na estante devido ao pouco uso. Você provavelmente já viu essa história antes.

A música desempenhava um papel central na vida de muita gente, mas foi relegada a figurante, objeto de cena, trilha sonora distante da vida que passa apressada. “Ouço mas não escuto” é o estado que melhor define os ouvintes contemporâneos. Ouvir música ficou fácil demais e a falta de esforço exigido nos atos de acumular e descartar centenas de faixas no clicar de um mouse nos fez assumir uma posição arrogante em relação à mais tocante das linguagens artísticas. Desprezamos a arte. Ignoramos as letras. Desaprendemos a escutar.

É preciso desacelerar.

O retorno ao vinil é um modo de dar à música o tratamento necessário à sua boa fruição. Anulam-se as distrações do trânsito entrando pelos seus fones de ouvido enquanto caminha na rua, ou a possibilidade de pausar a canção para assistir um novo vídeo que surgiu na tela de seu computador. A música se impõe e lhe convida para uma sessão exclusiva. É preciso escolher bem um único disco para lhe fazer companhia naquele momento específico, pois mudar de opção significará encarar novamente a movimentação física de pegar um disco na estante, tirar da capa, levar até o aparelho de som, colocar a agulha sobre o vinil e aumentar o volume. Você pode até andar pela casa enquanto faz outras coisas, mas provavelmente vai desejar sentar em frente ao som e apreciar o acontecimento musical que ali se apresenta sem maiores interferências, por completo, sem pressa, um lado após o outro.

Esta coluna tem o intuito de incentivar entre os leitores a redescoberta – ou descoberta – do hábito de escutar música com a dedicação que essa forma de arte, assim como todas as outras, demanda.

Achei necessário inaugurar este espaço com este texto para dizer que é com esse espírito desacelerado que a coluna será publicada, sem regularidade fixa e sem formato recorrente: às vezes textos, outras vezes notícias, notas curtas, resenhas, histórias pessoais, ou mesmo um pouco de cada em uma mesma edição. Entre os temas que abordarei, discos, shows, equipamentos, indústria fonográfica, hábitos de consumo ou audição, colecionismo, e outros mais. Espero poder lhe encontrar mais vezes por aqui.

Jan Balanco@janbalanco

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8 Respostas para “[Coluna] Desacelerar #1 – por Jan Balanco

  1. Quero ser o primeiro a comentar…
    Que bom que escreveu! Mas não somente por ter escrito, mas o como fez. Eu estava há tanto tempo remoendo meu texto (1 ano pronto), em que formato deveria ser (com medo de um texto sem “dicas especializadas”) e você foi lá e pow! Parabéns meu amigo!!

  2. Bom dia! Acho o site ótimo e gostaria de saber se poderiam publicar um artigo meu. Abraços, Odirlei.

    • Fala Odirlei!! Beleza? Seguinte, manda pra gente no e-mail: vidaemvinil@gmail.com Vamos dar uma olhada e quem sabe role, mas não garantimos nada pois nunca fizemos esse tipo de parceria, mas nunca diga nunca, não é? Grande Abraço e continue comentando.

  3. Caramba. Lindíssimo texto. É a minha história também é aposto que de um monte de gente.

  4. PARABÉNS !! Belíssimo texto. Foi exatamente esse sentimento que me fez retornar ao vinil… desacelerar…

  5. Pingback: [Coluna] Um Sulco de Vida #2 | Uma Vida Entre os Discos

  6. Ótimo texto e a foto do aparelho de som é de encher os olhos!

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